15.3.06

Shakespeare au Congo

Mobutu, Roi du Zaire é um excelente documentário histórico que merecia ser mostrado em todos os cursos de ciência política. Realizado em 2004, por Thierry Michel, o filme segue a vida de Mobutu desde os tempos da soberania belga, quando era apenas um jornalista na exposição mundial de Bruxelas, até à hora do seu exílio e da morte sem glória em Marrocos. Ao longo de mais de duas horas de filme, o realizador, de forma sóbria, dá a sua perpectiva sobre quarenta e tal anos de história do Congo centrados numa só pessoa.

Um a um, os acontecimentos vão-se sucedendo. Da tomada do poder pelo jovem Désiré no início dos anos 60, com a eliminação de todos aqueles que se encontravam hierarquicamente acima dele - entre os quais o primeiro primeiro-ministro e herói da independência, Patrice Lumumba - ao apadrinhamento do novo chefe pelos líderes de todo o mundo (imagens deliciosas na Casa Branca com Nixon e as respectivas "madames"). Da transmutação em divindade, com a máquina de propaganda do governo (liderada pelo espertíssimo ministro da informação Sakombi Inongo) a pôr literalmente o país a dançar, a cantar e a rezar em sua honra, à zairização, com as suas expropriações e nacionalizações selvagens. Da fantochada das eleições às festas dadas na casa da Côte D'Azur, onde o establishment africano pós-colonial e figuras várias do socialismo francófono eram habitués para efeitos de beija-mão. Dos encontros com os seus parceiros privilegiados - Rei Balduíno, Ceausescu, Miterrand e a família Bush - ao início do fim do mito, com o Congresso Para a Reconciliação Popular. Do refúgio interior em Gbadolite (conhecida por "a Versailles da selva") à doença. Do regresso falhado a Kinshasa à humilhação e capitulação perante Kabila.

Todas estas etapas da vida e obra de um dos grandes tiranos do século passado são ilustradas com reveladoras imagens de arquivo e sublinhadas por depoimentos de colaboradores próximos, de diplomatas e de vítimas. Mas os melhores momentos de Mobutu Roi du Zaire acabam por ser as inúmeras declarações de Sese Seko himself. A calma com que afirma as coisas mais inacreditáveis; o cinismo, que de tão descarado chega a ser convicto; a pose majestática e imperturbável. Tudo em Mobutu repele e fascina. A certa altura, quando confrontado pelo entrevistador sobre a violência dos métodos usados para calar os poucos opositores, responde de forma desarmante: "nós (os zairenses) somos Bantus. Somos diferentes. Não somos europeus. Temos as nossas maneiras próprias de resolver os problemas. Não nos queiram ensinar, pois por todos nós elas são aceites. O respeito pelo líder é algo sagrado. Não admite excepções."

Mobutu foi um dos grandes filhos da puta do século XX. Um dos nossos filhos da puta. Alguém que o Ocidente, em tempo de guerra-fria, soube usar como trunfo face a uma África quase sempre hostil. Mas foi também personagem de uma enorme grandeza trágica. Uma espécie de Macbeth sem peso de consciência. Uma lenda viva, cujo trajecto espelha bem aquilo que de pior as "descolonizações exemplares" trouxeram: o despotismo, a cleptocracia, a demagogia mais vil, a corrupção e a repressão.