É curioso (e preocupante) que, numa altura em que tanto se apregoa a nova geração “política” nascida no pós-vinte cinco de Abril, liberta dos preconceitos herdados do antigo regime e do PREC, sem “complexos de esquerda”, "sem vergonha de ser de direita”, haja cada vez mais gente a querer definir-se politicamente “à direita” por oposição (convicta ou oportunista - tanto faz) à própria “direita”. Não àquilo que é contingente na direita, mas ao que é substancial.
Os conceitos e as categorias foram inventados por serem úteis enquanto forma de definir e enquadrar factos e realidades. Não por mero capricho de exegetas do mundo e da vida. Se cada um pudesse definir a seu gosto aquilo que cada conceito significa ou as características significantes de cada realidade, a linguagem, a comunicação, a cultura, a civilização, seriam impossíveis. Reinaria o relativismo absoluto. E a lógica não passaria de um paradoxo.
Um estado de anarquia conceptual, onde cada um atribui às palavras o sentido que bem lhe apetece, é um estado bárbaro. Sem qualquer espécie de ordem e inteligência. Para quê as universidades, para quê as academias, para quê a transmissão do saber, para quê o saber, se, afinal, tudo é aquilo que cada um quiser que seja; se, consequentemente, ninguém pode saber ao certo o que cada coisa é.
Politicamente, as pessoas definem-se por aquilo que são, e não por aquilo que querem ser. Alguém é de esquerda ou de direita porque tem uma determinada visão do indivíduo, da sociedade, do Estado e da relação entre estas realidades. Não a visão grotesca e caricatural que por vezes é impingida na análise mediática do combate político. Não necessariamente – nem desejavelmente - uma visão perfeita e íntegra. Mas uma visão coerente entre os princípios essenciais em que acredita e as consequências que deles se retira. Não faz sentido – por exemplo – que alguém se diga defensor da propriedade privada e, na análise de uma situação concreta, dê razão ao Estado que expropria por “dá cá aquela palha”.
Dir-se-á que “esquerda” e “direita” são conceitos essencialmente culturais e históricos. E que, como tal, podem e devem ser revistos ciclicamente. Em algumas das suas características marginais, sem dúvida. Mas no que diz respeito à sua natureza, também ela histórica e cultural, não. Sujeitar a cognoscibilidade dos conceitos ao livre arbítrio revisionista de cada um, é impedir a comunicação.
O mundo humano é história, cultura e compreensão. O Homem é, sobretudo, memória transformada através da inteligência em conhecimento acumulado. Deitar para o lixo séculos de história e cultura, de conceitos que foram sendo construídos, depurados e assimilados, e que permitem a comunicação e o entendimento, “só porque agora me apetece ser original”, é deitar para o lixo a própria noção de civilização e por conseguinte - seja por niilismo conceptual ou por pura ignorância - regressar ao estado meramente animal de onde saímos.
20.10.06
Para acabar de vez com a cultura
p. by Eduardo
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