9.10.06

Na ressaca do "momento neocon" (II)

Na América, tal como em Inglaterra ou em qualquer outro país civilizado, existem várias direitas, todas elas com algo em comum, que as une e as caracteriza como “de direita”, mas também todas elas com inúmeros pontos de discórdia.

Um dos campos onde essas divergências se fazem sentir com maior intensidade, é o da política externa. Na América, para além dos neoconservadores, há pelo menos três outras grandes correntes com posições próprias sobre qual deve ser o papel dos EUA face ao resto do mundo: os conservadores realistas, os liberais internacionalistas e os nacionalistas Jacksonianos.

O Iraque foi – e ainda é – um excelente exemplo de como, no que respeita à política externa, nas direitas americanas, existem ideias diversas. Quem esteja atento à política americana, sabe que, antes, durante ou depois, nenhuma destas correntes se eximiu de apontar maiores ou menores críticas à forma como a presidência W. Bush justificou, iniciou e conduziu a guerra. Isto sem prejuízo de, "em tempo de combate", nenhuma ter negado o seu apoio ao exército americano.

A interpretação neoconservadora de conceitos como os de “guerra preventiva”, "excepcionalismo americano”, “hegemonia benigna” ou “intervencionismo democratizante”, foi e é severamente criticada à direita, por várias das direitas americanas.

Os conservadores realistas, na linha de Henry Kissinger, criticam o optimismo desmedido que os neocons colocam na ideia de “nation building”, e um certo utopismo com que, a pretexto da deposição de regimes hostis e da propagação da democracia pelo mundo, embarcam em irresponsáveis aventuras bélicas. Esta corrente, como o próprio nome indica, considera que o primeiro passo para a resolução dos problemas é o de perceber e aceitar a realidade tal como ela se apresenta. E só depois agir, com base no que a realidade é e não no que se gostaria que a realidade fosse. Desconfia, como é natural, daqueles que partem para a acção sustentados em pressupostos fantasiosos (mentirosos), optimistas ou voluntaristas, como alguns dos que estiveram na base da guerra do Iraque (adm, a crença de que a queda de Saddam bastaria para pôr em marcha um processo de democratização irreversível). E atribui um papel relevante à diplomacia e às alianças.

Já os liberias internacionalistas, seguindo a doutrina de Woodrow Wilson, criticam a forma como os neocons, no propósito positivo de tornar o mundo mais habitável, menosprezam e/ou desprezam o ordenamento internacional e as instituições supranacionais.

Por seu lado, os nacionalistas Jacksonianos, embora tenham começado por apoiar a invasão, à medida que esta se foi prolongando e que os seus custos começaram a pesar, tornaram-se ainda mais isolacionistas, voltaram a defender uma "América para os americanos", e acabaram a atacar W. Bush por este querer pôr o país “ao serviço do mundo”, desperdiçando recursos que, segundo eles, poderiam e deveriam ser gastos internamente.

Não interessa aqui tanto saber qual destas correntes é a mais respeitável (pessoalmente acho que a América tem um papel essencial no mundo, mas deve procurar sempre encará-lo de forma realista e nunca messiânica). Interessa, sim, saber que todas estas famílias existem e convivem dentro da direita americana, e que são distintas quanto à análise que fazem, quanto às perspectivas que propõem, quanto à hierarquização das prioridades, isto apesar de muitas vezes confluírem no objectivo final: a América como nação hegemónica e universalmente influente.

Por cá, no que respeita à política externa de Bush pós-Afeganistão e à guerra do Iraque, apenas foram “permitidas” duas posições: "contra" ou "a favor" – e ambas sem espaço para qualquer “mas”. Portugal é um país atrasado, pelo que se percebe que assim tenha sido. Revelando ignorância sobre os EUA e as suas correntes políticas, ou má-fé, uma boa parte da direita portuguesa encarou qualquer crítica à guerra do Iraque como uma manifestação de antiamericanismo (primário). Quem era contra a guerra só podia ser de extrema-esquerda, de esquerda ou – vá lá – de extrema-direita. Só podia ser pacifista, “bloquista”, fascista ou idiota.

Durante quase três anos, vigorou esta visão maniqueísta, propalada, em grande parte, por ex-marxistas e ex-trotskistas arrependidos. Nada de estranhar quando, afinal, na génese do movimento neoconservador – tal como na génese da educação política dos luso-neoconservadores de trazer por casa – está Marx, Trotsky e a crença num "regime moral" que tem de ser imposto a tudo e a todos, a bem ou a mal.

É, pois, com gosto, que finalmente vislumbro aquilo que parecem ser apreciações críticas feitas por gente de direita à presidência Bush e à doutrina neocon, sem que imediatamente sejam atiradas para o caixote do lixo. Algumas vindas de onde menos se esperava (embora a influência de Strauss na administração Bush seja, hoje, no mínimo, discutível). Bom sinal. A direita civilizada tende a ser individualista. Era uma pena que cá tivesse que alinhar toda pela mesma cartilha.