3.11.06

The departed (II)

Allen Ginsberg é uma espécie de Walt Whitman em versão cínica. Em Footnote to Howl, Ginsberg qualifica de sagrado tudo aquilo que lhe ocorre. Holy, holy, holy. Everything is holy! Everybody's holy! Everywhere is holy! Da alma ao ecstasy; dos misteriosos rios de lágrimas que correm por debaixo dos passeios aos “cocks of the grandfathers of Kansas”; do tempo à eternidade, e desta como extensão daquele e deste como preenchimento daquela; e ao caminho-de-ferro, e à locomotiva, como símbolos da América, terra dos grandes espaços, que pelos homens foi sendo desbravada.

A supermarket in California - poema audível por quem tiver o som ligado - é mais uma das homenagens que faz ao seu principal inspirador. Ginsberg começa por descrever um encontro onírico, surrealista, real (?) com a pessoa ou o espírito de Walt Whitman, num supermercado, algures na Califórnia. Na primeira parte do poema, Ginsberg conta o que viu e ouviu de Whitman, do ponto de vista de uma testemunha invisível, ou visível que vislumbra o invisível. Até que às tantas, momentos antes das portas do super fecharem, momentos antes das “famílias inteiras” regressarem às suas casas, dirige-se directamente a ele, questiona-o e, de certa forma, coloca-se nas suas mãos: Where are we going, Walt Whitman? The doors close in an hour. Which way does your beard point tonight? Os dois estão condenados a caminhar sozinhos, mas lado a lado, com Whitman a marcar o passo. Acima das vicissitudes do quotidiano. A confrontar os presentes e a conjecturar os futuros da América.

No fim, Ginsberg, com a ajuda da mitologia e aludindo também a Crossing Brooklyn Ferry, numa das mais bonitas interrogações da literatura, volta a afirmar a imortalidade de Whitman e da sua obra: como é afinal a América deste homem que, por não ter pago a moeda a Caronte (Charon), nunca chegou a passar para a margem dos mortos? Qual é, afinal, esta América que nunca chegou a ser tocada pelas águas do esquecimento?